4 de maio de 2011

Câncer: supervilão celular

 



  O câncer é uma doença genética de células somáticas – a manifestação de um genoma profundamente alterado.
  Ele emerge da multiplicação desenfreada e expansão clonal de uma única célula que, por meio de mutações cumulativas, perde as amarras sociais que ditavam seu bom comportamento no tecido e se torna, em essência, um sociopata celular.

Uma espécie enigmática

  A ideia dos organismos metazoários como sociedades celulares pautadas em rígidas regras de comportamento fica bastante evidente quando examinamos o ciclo de vida do Dictiostelium discoideum.Esta é uma espécie enigmática, que tem uma posição incerta na “árvore da vida”.
  Em certas fases, o Dictyostelium é unicelular e existe como ameba. Em outras fases, ele é multicelular e congrega várias amebas para formar tecidos diferenciados. Assim, transita livremente entre o mundo dos protozoários e dos metazoários.
  Enquanto ameba, o Dictiostelium se alimenta fartamente de bactérias e se divide nas poças de água dos bosques, formando o lodo. Se, por acaso, as condições ambientais se tornam hostis e o alimento fica escasso, algo espetacular ocorre.
Uma ameba começa a emitir ondas de uma molécula transdutora de sinal chamada AMP cíclico. Imediatamente, as outras amebas se congregam a essa célula marca-passo e formam um agregado multicelular (ver figura) que migra em busca de outro local com boas condições ambientais e comida abundante. O agregado multicelular então se diferencia em um talo e um corpo frutífero cheio de esporos. Após certo tempo, os esporos são liberados e se transformam novamente em amebas de vida livre.
De certa maneira, ainda temos um pouco de Dictiostelium, pois somos metazoários multicelulares, mas podemos também existir como formas unicelulares livres, as células germinativas (espermatozóides e óvulos). Aliás, a diferença entre as células germinativas, que vão formar futuras gerações, e as células somáticas, que constituem nosso corpo e morrerão com ele, é absolutamente fundamental.
   O câncer é um essencialmente um fenômeno que envolve células somáticas. Em mais de 95% dos casos ele não é passado para gerações futuras, pois não acomete as células germinativas. Todavia, em algumas famílias ocorre transmissão hereditária de mutações específicas que predispõem fortemente os portadores a desenvolverem tumores malignos.

Luz no final do túnel?

  Assim, podemos entender agora que o câncer é uma doença genética de células somáticas que emerge e evolui à custa de um grande número de mutações cumulativas em seu DNA.
Essas mutações acometem principalmente três classes de genes: os chamados oncogenes, os genes supressores de tumor e os genes de reparo do DNA. Entretanto, não existe um “genoma do câncer” – cada tumor tem seu conjunto individual de mutações.
  No mundo do câncer impera o mal e reina a anarquia – é o caos genômico. As células cancerosas mutantes dividem-se contínua e incontrolavelmente, são resistentes à apoptose, estimulam o crescimento de vasos sanguíneos para nutrir o tumor, quebram as interações com suas vizinhas, desgarram-se do tecido original e vão se alojar em locais distantes, no fenômeno da metástase.
Para conseguir evoluir darwinianamente no trajeto para a sociopatia e a criminalidade, uma célula cancerosa precisa sofrer um número enorme de alterações genéticas, o que seria improvável de ocorrer ao acaso.
Mas o que torna a célula cancerosa especialmente perigosa – um requinte de crueldade – é o momento em que ela sofre mutações nos próprios genes responsáveis pela manutenção da ordem e progresso no genoma. Dessa maneira, cria-se uma instabilidade genômica que vai propiciar a evolução do câncer.
Termino com uma nota positiva, pois talvez o feitiço possa ser virado contra o feiticeiro. Uma nova terapia muito promissora contra os tumores malignos que possuem mutações em genes de reparo de DNA é a “letalidade sintética”. Dois genes são sinteticamente letais se a mutação de um gene sozinho não é suficiente para tornar a célula inviável, mas a mutação simultânea de ambos provoca sua morte.
Se conseguirmos inibir outros genes de reparo que interagem com o gene de reparo mutado que o câncer está explorando, poderemos teoricamente matar as células cancerosas, poupando as células normais, que possuem cópias normais desse gene.
Uma publicação muito recente no periódico The Lancet mostrou que, realmente, o conceito parece funcionar na prática, pois tratamentos com inibidores da enzima poli(ADP-ribose) polimerase (PARP) foram capazes de induzir letalidade sintética em tumores de mama de mulheres com mutações nos genes BRCA1 ou BRCA2.
Esperamos que a letalidade sintética seja o tão esperado super-herói que vai nos ajudar a derrotar o câncer.


4 comentários:

  1. Muito interessante, tambm já fiz uma postagem sobre o câncer!!

    Parabéns, ótima postagem!!

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  2. Só que o cancer não é uma doença APENAS de celulas somaticas

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  3. é eu sei que não é,só que achei interessante e quis postar o assunto...

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